Continuação da Parte 4
Sentado entre os príncipes
Não tinha dúvida de que venceria na vida, porque a Bíblia diz que Deus ampara o órfão e a viúva; diz também que ele derruba os outeiros e aplaina os vales, ou seja, que derruba a soberba e eleva a humildade. Diz que abate os fortes e eleva os fracos e faz seus filhos mais humildes assentar entre os príncipes do seu povo.
Mas ele imaginava que ‘assentar entre os príncipes do seu povo’ seria talvez aqui na Bahia, ao lado dos príncipes dos agricultores, dos fazendeiros. Sabia que prosperaria como agricultor, como pequeno empresário, em Salvador, como fazendeiro, mas jamais imaginou que Deus o elevaria a ponto de assentar com os príncipes, em Brasília. Imaginava que fosse acontecer na Bahia e não em Brasília, por dois motivos:
“Eu não gostava muito daquela cidade (Brasília), talvez até por causa do sofrimento que eu padecia nas ruas da mesma e o clima e a vegetação que não me agradavam. Para mim só existia o sol, a caatinga, a seca, a poeira, os espinhos do sertão, os quais, por incrível que pareça, também me faziam falta e eu sentia saudade”.
Seu maior sonho: voltar para o torrão natal
Seu pai morrera e ele fora levado pela mão dos outros para Brasília. Lá passou pelos mais tenebrosos sofrimentos. Durante o tempo todo, conservava na mente a esperança de que um dia as coisas seriam diferentes.
“Eu só tinha um sonho: voltar para o meu torrão natal. Eu só pensava em morar no campo, da Bahia, mais precisamente, no pé da Serra da Laranjeira, em Lagoa Grande, onde nasci. Muito mais do que isso Deus me deu um pedaço de terra, com meu gadinho para eu viver tranquilo e feliz. Deus me deu mais terra do que eu imaginava, o rebanho maior do que eu pretendia, o número de filhos mais do que eu desejava ter. Então sou um homem mais do que realizado”.
“Eu só quero agora, dentro do possível, servir ao próximo, dando uma demonstração de gratidão a Deus, porque ele diz aquele que acolhe a um necessitado, acolhe anjos celestiais, na face da terra, em forma de seres humanos”.
Beto Lelis definido por ele mesmo
“Um ser humano de um bom caráter, de uma personalidade definida: caráter e personalidade mais do que definidos. Um bom pai, um bom esposo, um bom companheiro. Um ser humano mais do que amante da natureza, extremamente amável para com crianças e animais, apaixonadíssimo pelo sertão e em especial, pelo povoado de Lagoa Grande, no pé da Serra da Laranjeira, aonde eu nasci. Um ser humano mais do que emotivo que sorri com facilidade, mas chora com mais facilidade ainda, principalmente quando vê injustiça sendo praticada ou o seu próximo sofrendo e ele, limitado às vezes, não pode resolver certas problemáticas. E acima de tudo isso, um cristão, um homem que teme e respeita a Deus e que é dotado de uma fé inabalável, a saber, uma verdadeira fé. Pois a Bíblia diz que a fé é acreditar nas coisas que não se vê, eu não vejo a Deus fisicamente, mas eu acredito piamente na sua existência, como também naquilo que já dissemos, que ele me criou, que ele me salvou, que está aqui presente. Acredito piamente na vida eterna, no Paraíso que ele tem reservado para os seus filhos, e assim por diante”
Uma história do amor de Deus para com eles
Esta história, Beto diz que nunca deixará de contar, para que ela sirva de testemunho, no que diz respeito ao amor de Deus para com seus filhos.
Ele conta que moravam em um barraco de madeira, que ficava na Rua 14, e cujo número era 10. Um dia, ele e os irmãos se preparavam para sair, quando a mãe deles, Dona Bela, disse-lhes, em tom de voz emocionado, para que não voltassem ao meio-dia, pois naquele dia não havia alimento para eles.
Aquele parecia ser, provavelmente, o segundo dia mais triste na vida deles. O primeiro foi quando perderam o pai. O segundo, decerto, era o dia em que lhes faltaria tudo, levando-os a crer que passariam fome. Mas, como eram muito apegados a Bíblia, logo veio à mente o versículo que diz: “Fui moço e hoje sou velho, mas nunca vi um justo desamparado e nem a sua descendência mendigar o pão”. E a mãe deles era uma mulher temente a Deus, que os levava para a igreja.
A única renda que a família tinha era um salário mínimo para oito pessoas, afora os bicos que um ou outro fazia na rua, o subemprego, uma coisa irregular.
Beto foi pegar sua caixa de engraxar sapatos. Osvaldo foi pegar um balde de lavar carro. Eram sete irmãos, todos menores de idade, sendo que os dois mais velhos trabalhavam ganhando metade de um salário mínimo. Então a renda da família era apenas um salário mínimo para oito pessoas: E aconteceu algo extraordinário. Antes que o filho mais velho saísse, alguém bateu à porta, que era como as portas das roças do sertão, ou seja, serradas ao meio, formando duas bandas, e dona Bela abriu, mandou o rapaz entrar, mas ele disse que não queria e perguntou: “É aqui que mora Dona Bela? ”. Ela respondeu: “É sim. E você quem é? Ele disse: “Eu sou Áureo”. Dona Bela disse: “Entra Áureo”. E ele disse: “Não, eu só vim aqui lhe deixar esta encomenda”.
E era uma sacola. Ela pegou a sacola e perguntou: “Quem é você?” E ele respondeu: “Eu sou filho de Darzinha. Sou parente da Senhora”. Dona Bela disse: “Minha mãe falava mesmo de uma prima minha chamada Darzinha que mudou para Mato Grosso”. Áureo falou: “Essa mesma, inclusive eu nasci lá”.
Dona Bela voltou a insistir: “Ô, meu filho, entre. Ainda que longe nós somos parentes”. Mas Áureo disse que não ia entrar, porque estava apressado.
Dona Bela colocou a sacola em cima da mesa e os filhos correram para olhar o que tinha na sacola. E enquanto olhavam, o rapaz desapareceu, como que em um passe de mágica, pois a Vila Tenório é uma favela muito movimentada. Favela é assim: barracos pequenos e um contingente populacional muito grande.
Quando Dona Bela e os filhos procuraram o rapaz, para agradecer, ele já tinha desaparecido entre os que subiam e desciam, entre os que transitavam pela rua.
“O Áureo foi embora. Desapareceu. No dia em que pensamos que íamos passar fome, foi talvez o dia mais farto de nossas vidas”.
Dentro daquela sacola tinha tudo que uma família de classe média gostaria de ter para comer: o feijão, o arroz, a carne, a verdura. Talvez naquela época não existisse, é como se hoje existisse, o iogurte, o doce, tudo que você imaginar.
Foi tanta fartura que ninguém quis ir trabalhar naquele dia. Ficaram comendo horas e horas. Alguém poderia dizer: coincidência, o cara tem uns primos pobres, soube e foi lá levar uma cesta. Mas aí entra a segunda parte da história – diz Beto:
“O tempo passou e ninguém nunca mais deu notícias desse jovem chamado Áureo. Aí as coisas foram melhorando. Lelinha, a irmã mais velha já se formara para professora. Ela estava trabalhando como professora do primário e já tínhamos comprado um televisor preto e branco. Isso era suficiente para imaginarmos que estávamos bem. Afinal, não mais faltava comida e ainda tínhamos um televisor”.
O espírito de gratidão sempre norteou aquela família e por causa disso começaram a fazer aquela pergunta entre eles: “E aquele cara que nos trouxe a cesta básica?”
“E a bela cesta cheia de alimentos e de coisas sofisticadas ficou martelando nossa cabeça. Decidimos procurar o cara para retribuir o que ele fez por nós. E aí a gente sai perguntando a um e a outro quem conhece o Áureo”.
“Os baianos que também lá residiam iam perguntando um para o outro, se conheciam Áureo que era de tal lugar, filho de Dona Darzinha. Até que um disse que conhecia o Áureo e nós pedimos que nos levasse até ele. Mas a pessoa que disse conhecer, disse também que não podia ser o Áureo que esteve lá. E nós perguntamos porquê”:
“Porque o Áureo é presidiário” – respondeu a pessoa.
“Então quem foi e como é este Áureo”.
“É um moreno, magrinho, meio calvo”
“Então é o Áureo. Mas quando foi isso”?
“Foi agora”.
“Então não é o Áureo, porque o Áureo está na cadeia há muito tempo”.
“Então só tem um jeito. Vamos para a cadeia, visitar este tal de Áureo para saber se é ele mesmo”.
E os meus irmãos mais velhos foram visitar e era realmente o dito cara. Foi aquela alegria e confraternização.
“Nos conte aí: tal época que você levou aquela cesta você já era presidiário?”
Áureo disse que sim e eles perguntaram como aconteceu:
“Era próximo do Natal, lembram disso?” – perguntou Áureo. E todos disseram que sim. Então ele continuou: “O diretor me deu indulto de Natal, por bom comportamento. Então eu ia para casa ver minha mãe, mas antes passei na casa de minha irmã Sueli, que é esposa de Simão, advogado. Sueli me perguntou o que eu estava levando para a mamãe e eu disse que nada, pois estava saindo da cadeia. Então ela fez uma cesta e disse: Áureo leva para mamãe”.
Áureo em vez de levar para casa da mãe dele, toma conhecimento, ainda no ônibus, que uns parentes recém-chegados da Bahia, eram pobres e estavam morando em um barraco de madeira.
E Beto Lelis, emocionado, conclui o testemunho:
“Um cara com dinheiro no bolso, poderia ir passando, saber que tinha uma família passando necessidade, comprar uma cesta e dar de presente. Mas não! Deus disse: Eu sou o Deus das coisas impossíveis. Então pegou um presidiário, alguém mais pobre do que nós, que não tinha nada, e o enviou para matar nossa fome naquele dia, fazendo com que um milagre acontecesse, para que ficasse registrado para o resto de nossas vidas: Deus enviou um mensageiro e este mensageiro não era uma pessoa rica, que passava por ali cotidianamente, e sim, um presidiário, um tirano”. [Continua na Parte 6]
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