O tempo em que chorava de revolta
Beto viveu tempos difíceis e revoltantes, sobretudo quando tinha que levantar às 04h30min da manhã e sair de casa, nas madrugadas chuvosas, aos 12 anos em companhia de Osvaldo, com 10 anos e sofrendo de asma e bronquite. Logo que tomava pingos de chuva, o estado dele agravava bastante.
Pegavam o ônibus Corujão da Madrugada, que saía 4h30min. da cidade satélite chamada Gama. Osvaldo sentava em um banco e Beto sentava em outro, para não ver o sofrimento do irmão.
“Você vendo o seu irmão sofrendo de asma e tomando chuva chora, porque não pode fazer nada. Eu não podia dizer para ele: fique que eu sozinho resolvo a jornada, não dava. Eu tinha que sustentar a mim e ele que sustentar a ele e juntos tínhamos que ajudar no sustento de nossa mãe e de duas irmãzinhas mais novas do que nós, uma com dois anos de idade”.
Depois do Gama, saltavam no Núcleo Bandeirantes, e ali pegavam outro ônibus para a Ceasa. Todo dinheiro que ganhavam, investiam na compra de mais frutas, que eles levavam para vender no centro da cidade de Brasília e para isso pegavam um terceiro ônibus.
Colocavam as frutas para vender, no quebra mola de uma superquadra e, às vezes, a fiscalização do Governo do Distrito Federal, chamada popularmente de Rapa, chegava de surpresa e rapavam tudo que eles tinham. E ele chorava amargamente, quando vinha a lembrança de que não tinha nada no bolso, nem sequer o dinheiro da passagem de volta para casa, porque não tinham vendido ainda a primeira dúzia de limão, ou de laranja, ou a caixa de uva.
E o pior, no Ceasa tinha deixado o que possuía e até o que não possuía, pois comprara duas, três caixas de fruta, quando só tinha capital para uma, deixando as outras fiado. Não tinha como esconder a tristeza, a revolta e o choro, naqueles momentos. Então voltava para o Ceasa e dizia ao credor:
“Não posso lhe pagar hoje, porque me tomaram tudo que tinha”. Quando dizia isso, um dizia: “Leva o que você precisar de novo fiado, vá ganhar dinheiro, e volte e me pague quando puder”. Mas outros diziam: “Você está querendo me enganar, está querendo é me dar o calote”.
Mais uma vez Beto chorava revoltado. Primeiro por ter sido vítima de uma injustiça social, depois por uma acusação indevida.
O choro vinha pela quarta vez, quando chegava a casa e encontrava suas irmãzinhas esperando as frutas que às vezes sobravam, ou uma bala que comprava para elas, ou a mãe esperando pelo ganho do dia, para compra da carne ou do leite.
Ela chegava perto e perguntava: “Ganharam quanto hoje?” Ai só restava chorar e dizer: “Mãe não ganhamos nada, e como não bastasse ainda tomaram o pouco que nós tínhamos”.
“Mas por isso amaldiçoei a Deus e deixei de acreditar? Muito pelo contrário! Cada vez mais a minha fé se fortalecia, porque lá no livro de Salmos, o rei Davi diz: Fui moço e agora sou velho, mas nunca vi um justo desamparado, nem a sua descendência mendigar o pão. Em outro momento Jesus Cristo disse: no mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo, eu venci o mundo, vocês também vencerão”.
Quando se lembrava dessas frases bíblicas, naqueles momentos de maior tristeza e revolta, ele se enchia de ânimo e dizia: “Nós vamos vencer, nós vamos vencer. Vamos confiar e Ele virá ao nosso encontro”. E assim aconteceu com eles.
“Todos nós fomos educados e apesar de passarmos por tantas dificuldades, nunca roubamos ou defraudamos alguém. Nenhum dos filhos de minha mãe cheirou cola ou consumiu drogas. Nenhum, como disse, roubou ou foi preso, ainda que pese o sensacionalismo da revista Veja”.
Sofrer ou não sofrer, o que seria melhor?
Em sua infância, a situação era mais complexa do que hoje. O trabalho infantil era permitido, ao contrário de hoje que é proibido, mas existe, de forma clandestina. Naquele tempo, o de menor poderia ser registrado em um estabelecimento comercial, ganhando meio salário mínimo.
“Então eu nunca me sujeitei a isso. Eu não iria trabalhar para os outros, pois se o salário já era mínimo para o adulto, e para o de menor era a metade, eu preferia lavar carro nas ruas e vender frutas”.
Apesar de todo este sofrimento, somado ao fato de ter se sentido escravizado pelo velho Corró, até o dia em que se rebelou dizendo que só iria carregar a metade do peso, que lhe era imputado, quase cinquenta quilos, e de ir trabalhar por conta própria, Beto não sabe se seria melhor para ele não ter passado por tanto sofrimento.
Na época, era obrigado a carregar duas caixas de limão, que ele colocava em um saco de estopa, jogava nas costas e saía, na adolescência, em busca de compradores. Eram quase quarenta ou cinquenta quilos que ele carregava: “Feito um burro de carga mesmo. Eu não aguentava aquilo não. Tanto é que tinha um problema e ainda tenho até hoje nas pernas, fruto dessa extravagância”.
O fato de se alimentar mal nas ruas, pois Corró só lhe dava um sanduíche e isso era insuficiente para matar sua fome, gerou nele uma úlcera que de vez em quando ainda aparece.
Então começou a trabalhar para si mesmo, carregando apenas uma caixa. Se era mais de duas caixas, ele pegava um táxi, até o ponto de ônibus. Passou também a se alimentar melhor: “Sofri muito e se não tivesse passado por isso não teria sido pior.
Muitos caíram na marginalidade, viraram famosos puxadores de carro. Outro foi alvejado pela polícia, assaltando uma mansão em um lago de Brasília e outra caiu na prostituição. Eu não gostaria de ter passado por isso, mas foi através do sofrimento que passei a dar valor às coisas boas da vida e trilhar no caminho do trabalho e da seriedade. O sofrimento, do mesmo modo que leva muitos a se agarrar à marginalidade, leva outros a se aproximar de Deus, da família e da sociedade”.
Citando a Bíblia, Beto diz que agradece a Deus pelo sofrimento que passou na sua infância, em vez de se lamentar, pois não sabe se teria sido melhor de outra forma. A Bíblia diz que a sabedoria de Deus parece loucura para os homens e a sabedoria dos homens parece loucura para Deus.
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