Parou assustado:
— O que é isso, meu Deus?
Olhou bem devagarinho para o maço de muitas notas que jazia sobre sua mesa.
Não dava para ter certeza se era notas, porque estava embrulhado. Mas deduziu que eram notas, porque o embrulho era no formato de muitas notas graúdas, amontoadas.
Pegar ou não pegar?
Se pegasse e fosse uma armadilha? Provavelmente alguém queria incriminá-lo de alguma coisa e aproveitou a ocasião.
Mas, e se não fosse nada do que estava pensando? E se fosse uma simples devolução de algum dinheiro que emprestara alguém no passado?
A indecisão se fortaleceu.
Estava quase desistindo de pegá-lo, quando de repente, num impulso feito o de um animal que salta sobre a presa, ele saltou sobre o embrulho e o pegou.
O impacto do seu pulo foi tão forte, que arrastou a mesa alguns centímetros para a frente. Ela oscilou bastante, durante alguns segundos, derrubando um vaso de porcelana que se encontrava junto ao pacote.
Só o pacote não caiu. O pacote estava em suas mãos. Ah, precioso pacote!
Parou por um instante, enquanto ouvia o tilintar da porcelana de cor azul, transformando-se em centenas de pedacinhos.
Eis que sai dum quarto uma mulher alta, loura, cara de quem já cuidou de vários filhos, olhar flamejante, ira visivelmente forte:
— Desgraçado! Você quebrou meu jarro!
— Calma!
— Calma?! — Você está me mandando ter calma? — inquiriu ela, arregalando os olhos, franzindo a testa, e apertando os dedos contra as palmas das mãos, como se aquele gesto amenizasse sua vontade de matar o homem.
— Calma, meu bem, calma! — disse ele, fazendo um gesto amenizador. — Não tive culpa.
— Você quebrou meu jarro de propósito! Você nunca gostou da mamãe mesmo, e agora aproveitando o ensejo destruiu o presente que ela me deu, no dia do nosso casamento.
No dia do nosso casamento…no dia do nosso casamento! — repetiu ela algumas vezes, enquanto os olhos enchiam de lágrimas.
— Você está me julgando desumanamente, querida! — disse ele, num tom pacífico, tentando a todo custo se ver livre daquela discussão, que causava-lhe nojo.
— Não me chame de querida, seu imbecil.
Por instantes ele fechou os olhos e contou de 1 a 10. Era a fórmula que usava para não perder o controle.
A mulher estava fora de si. Pegou uma cadeira e atirou-a com toda força nele.
Queria que a cadeira acertassem em cheio no rosto dele. Que fizesse do rosto dele, aquele maldito, em mil pedacinhos, como ele fizera com seu precioso jarro de porcelana.
Mal ele teve tempo de desviar da cadeira furiosa.
A cadeira espatifou-se adiante.
— Calma! — pediu ele mais uma vez. — Podemos conversar como duas pessoas civilizadas.
Ela parecia já não ouvi-lo mais. Aproximou-se bastante dele e sem pensar duas vezes acertou-lhe a mão em cheio no rosto.
O tapa produziu um som característico face ardeu bastante.
Ele não revidou. Estava aprendendo a ser pacifista.
Então ela deu-lhe outro e mais outro…vários.
Ele continuou sem reagir.
Então ela acertou-lhe um murro na boca. Ele cambaleou e só equilibrou-se porque segurou nas bordas da mesa.
Sentiu a boca cheia de sangue. Bochechou e sentiu alguma coisa solida chocando-se contra seus dentes.
Estava tão irritado que esqueceu dos bons modos e cuspiu na mesa com toda força. O dente chocou-se contra o vidro, num ruído característico.
A mulher olhou para o sangue sobre a mesa e irou-se mais ainda.
— Imundo!
— Calma, meu bem. Não precisa ficar tão irritada. Eu compro outro vazo do mesmo e lhe dou!
— Porco!
— Calma! Eu compro outro.
— Não quero outro, desgraçado. Quero o mesmo, e o mesmo você quebrou de propósito.
Então foi até a cozinha, pegou a faca de cortar carne e veio correndo de lá, em direção ao homem.
O ódio era imenso. Estava agindo como um animal furioso, que age instintivamente, sem saber o que está fazendo.
Tropeçou no tapete e caiu sobre a faca.
Sentiu a lâmina perfurar-lhe o estômago.
Suas últimas palavras foram:
— Eu te amo!
O homem todo abismado, tentou acudi-la, mas já não adiantava.
Eis que chega a polícia. Fora chamada por um vizinho, que estranhou a discussão.
O homem foi preso.
Antes de sair de sua casa viu as polícias abrirem lentamente o pacote.
Falavam em repartir o dinheiro entre si.
Uma forte explosão.
A casa, juntamente com a mulher, com os cacos do vaso de porcelana, com o dente, com os policiais, com o homem e com tudo que havia dentro, foi para o espaço.
Antes de dormir pela última vez o homem viu no horizonte as colinas azuis. Sentiu saudades.
Por: Jackson Rubem:
Extraído do livro de contos Sangue Santo.
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